Os Santos Populares estão aí
mesmo, mesmo a esbarrar e, com eles, o cheirinho a sardinha e pimento assados e
os primeiros acordes de música popular portuguesa, pano de fundo dos bailaricos
típicos destas romarias. Este ano, as hostes foram abertas nas festas do Senhor
de Matosinhos.
Ora bem! Senhor de Matosinhos, no
dicionário da minha infância e adolescência, teve como sinónimos “Pão com
Chouriço”, “Farturas”, “Carrosséis” e “Bugiganças-que-os-senhores-de-países-africanos-vendem-e-que-ficam-tão-bem-nos-meus-pulsos-e-nas-minhas-orelhas”.
Ah! E quase me esquecia desta, de igualável importância e de merecida
referência: “Tômbola-para-a-obra-do-Padre-Grilo”. Aqui fui muito feliz,
juntamente com os pacotes individuais de bolachas waffer, lenços de papel, garrafas de óleo, miniaturas de miniaturas
de carrinhos, canecas, canetas, bacias, e mais pacotes de lenços, e mais
bolachas e mais coisas “úteis” – nunca a “inútil” da bicicleta, nem a “inútil”
da boneca que gatinhava ou a “inútil” da máquina de escrever electrónica. E eu
ficava maravilhada por ser possível, com apenas 50$00, ganhar sempre qualquer
coisa, nem que fosse um lápis a dizer “Narciso a Presidente”. Era limpinho!
“Aqui sai sempre prémio!” Mas olhando sensatamente para a coisa, considero
agora que já que estávamos ali para fazer solidariedade, então talvez não
tivesse sido má ideia devolver aquilo tudo à caridade que, como a minha mãe
dizia, eram coisas que davam sempre jeito, mas a verdade é que tínhamos que as
arrastar a festa toda e, quando chegávamos a casa, todo aquele entusiasmo pelo
sucesso do jogo se tinha desvanecido, o coche tinha-se transformado novamente
em abóbora e apenas restavam dois sacos cheiinhos de tralha.
Mas voltando aos festejos de
ontem, além de ficar a caminho de casa, um desejo sôfrego de ingerir um hiper-mega
pão com chouriço (que surgiu desde que vi pela primeira vez este ano o painel
de publicidade a esta festa), fez com que conseguisse persuadir a minha metade
boa a providenciar um lugar de categoria sobre um passeio da marginal de
Leixões. Graças à elevadíssima aptidão do condutor em entalar (ou literalmente
enlatar) o nosso pequeno utilitário entre dois todo-o-terreno, e depois de
duas coçadelas da panela no lancil do jardim separador central desta via, lá fomos
atrás da massa populosa ávida de celebração mais pagã do que religiosa, com o
faro alvitrado para o fumo de onde saem todos os petiscos salgados desta festa.
Apesar da hora tardia, da manifesta falta de fome e dos objectivos dietéticos
desta ocasião “Sai um pãozinho com 'chóriço' a estalar aqui para a boneca”. E já
que era dia de festa e não estava sozinha, lá pedimos mais uma bifana, uma coca-cola e uma cervejinha geladas. Só visto! Um regalo para os olhinhos de
quem já quase esqueceu o sabor daquela bebida mágica que, dizem as más-línguas,
provoca erosão ácida, celulite e é muito útil para desentupir os canos. Só vos
digo, é tudo gentinha vazia de espírito, sem paixão pelas coisas boas da vida e
que provavelmente vai envelhecer solteira e chata: vale bem a pena um minuto de
prazer na boca, uma hora de peso na consciência e um ano de casca de laranja
nas coxas, porque os senhores das farmácias também têm que vender aqueles
cremes maravilhosos que não funcionam e assim é da maneira que os nossos
maridos ficam com ideias profícuas de presentes. Mas como tudo o que é bom
termina sempre, rapidamente se assolou sobre o meu estômago uma overdose
nutricional que ultrapassou o seu "Estado Limite de Utilização", conferindo-lhe um mal-estar
insuportável que, num ápice, pôs termo às festividades gastronómicas - nitidamente, um erro no cálculo das solicitações de um órgão, por sua vez deficientemente dimensionado com o objectivo de permitir ao utilizador vestir um par de calças com 10 anos e respirar ao mesmo tempo.
Deste modo, as farturas ganharam um bilhete para outra romaria e deram lugar a uma caminhada
necessária à absorção do repasto. Entre canecas para beber vinho verde,
santinhos populares para guarnecer as cascatas são-joaninas e o mobiliário em
verguinha, destacaram-se os brinquedos “made in china” que já foram integrados
como peças tradicionais de venda nestas festas e que voavam sobre as nossas
cabeças, não nos cegando por milagre do santo padroeiro. Uns metros mais acima, e com o chouriço, lá em baixo, ainda a lutar com a coca-cola, damos de caras
com a comitiva de doces caseirinhos (ou talvez não) que vêm do Marco de
Canavezes e cujas especialidades são as fogaças de… Vila da Feira. Por fim,
encontrámos a típica roulotte que vende o que de mais português existe na cena
musical nacional, ainda que alguns destes registos apresentem já uma idade
considerável e o texto na capa esteja quase indecifrável pela passagem do
tempo.
Uma hora volvida e a festa estava
no fim, para nós, velhos na casa dos 20 e dos 30. Ficou por visitar a igreja barroca (o
verdadeiro ícone religioso desta romaria, só venerado e visto por 13% dos visitantes da
festa), mas os altares ainda não estavam preparados pelas mulheres dos
pescadores, a noite ia avançada e seria de extrema importância não exportar o
meu jantar para a sarjeta dos serviços municipalizados do concelho. Faltou também dar o pulinho
ao Padre Grilo e colaborar solidariamente com a sua obra. Mas estou certa que
não faltarão oportunidades para ir lá buscar mais uns saquinhos com “relíquias”,
na esperança da boneca “gatinhante” ainda lá estar, aproveitando o momento para
saudar os senhores dos Pan Pipes, as
senhoras africanas que vendem djambés
e fazem trancinhas e transportam os filhos às costas (tudo ao mesmo tempo), os
vendedores de manjericos, de tachos, de chapéus e todos os imigrantes ilegais
que negoceiam a elevada qualidade das falsificações rascas das melhores marcas
internacionais – tudo em prol da nossa saúde ocular. Também não fui aos
“carrosséis”, mas este tipo de actividade, assim como o bailarico que estava
ali ao pé, seria totalmente incompatível com o estado gástrico do meu devaneio
culinário - isso e uma eventual facadita proporcionada pela falta de segurança local.
E lá voltamos para a nossa
viatura de barriga cheia de festas populares, rezando ao São João, ao Santo
António, ao São Pedro e, claro, ao Senhor de Matosinhos, para estarmos cá para
o ano outra vez a comer outro pãozinho com chouriço e, quem sabe, comer uma
fartura ou duas. Isto, claro está, se o FMI não decretar o FIM da nossa conta
bancária e se o Passos Coelho não acabar com estes feriados que me dão tempo
para comparecer as estes eventos (e para publicar o seu registo).
Nunca o termo "Estado Limite de Utilização" foi tão bem contextualizado!! :) Mais uma vez.. muito bom!!!
ResponderEliminarAi "Inginheira do Carago"... Beijo grande!
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