sábado, 11 de junho de 2011

Romaria do Pão com Chouriço

Os Santos Populares estão aí mesmo, mesmo a esbarrar e, com eles, o cheirinho a sardinha e pimento assados e os primeiros acordes de música popular portuguesa, pano de fundo dos bailaricos típicos destas romarias. Este ano, as hostes foram abertas nas festas do Senhor de Matosinhos.

Ora bem! Senhor de Matosinhos, no dicionário da minha infância e adolescência, teve como sinónimos “Pão com Chouriço”, “Farturas”, “Carrosséis” e “Bugiganças-que-os-senhores-de-países-africanos-vendem-e-que-ficam-tão-bem-nos-meus-pulsos-e-nas-minhas-orelhas”. Ah! E quase me esquecia desta, de igualável importância e de merecida referência: “Tômbola-para-a-obra-do-Padre-Grilo”. Aqui fui muito feliz, juntamente com os pacotes individuais de bolachas waffer, lenços de papel, garrafas de óleo, miniaturas de miniaturas de carrinhos, canecas, canetas, bacias, e mais pacotes de lenços, e mais bolachas e mais coisas “úteis” – nunca a “inútil” da bicicleta, nem a “inútil” da boneca que gatinhava ou a “inútil” da máquina de escrever electrónica. E eu ficava maravilhada por ser possível, com apenas 50$00, ganhar sempre qualquer coisa, nem que fosse um lápis a dizer “Narciso a Presidente”. Era limpinho! “Aqui sai sempre prémio!” Mas olhando sensatamente para a coisa, considero agora que já que estávamos ali para fazer solidariedade, então talvez não tivesse sido má ideia devolver aquilo tudo à caridade que, como a minha mãe dizia, eram coisas que davam sempre jeito, mas a verdade é que tínhamos que as arrastar a festa toda e, quando chegávamos a casa, todo aquele entusiasmo pelo sucesso do jogo se tinha desvanecido, o coche tinha-se transformado novamente em abóbora e apenas restavam dois sacos cheiinhos de tralha.

Mas voltando aos festejos de ontem, além de ficar a caminho de casa, um desejo sôfrego de ingerir um hiper-mega pão com chouriço (que surgiu desde que vi pela primeira vez este ano o painel de publicidade a esta festa), fez com que conseguisse persuadir a minha metade boa a providenciar um lugar de categoria sobre um passeio da marginal de Leixões. Graças à elevadíssima aptidão do condutor em entalar (ou literalmente enlatar) o nosso pequeno utilitário entre dois todo-o-terreno, e depois de duas coçadelas da panela no lancil do jardim separador central desta via, lá fomos atrás da massa populosa ávida de celebração mais pagã do que religiosa, com o faro alvitrado para o fumo de onde saem todos os petiscos salgados desta festa. Apesar da hora tardia, da manifesta falta de fome e dos objectivos dietéticos desta ocasião “Sai um pãozinho com 'chóriço' a estalar aqui para a boneca”. E já que era dia de festa e não estava sozinha, lá pedimos mais uma bifana, uma coca-cola e uma cervejinha geladas. Só visto! Um regalo para os olhinhos de quem já quase esqueceu o sabor daquela bebida mágica que, dizem as más-línguas, provoca erosão ácida, celulite e é muito útil para desentupir os canos. Só vos digo, é tudo gentinha vazia de espírito, sem paixão pelas coisas boas da vida e que provavelmente vai envelhecer solteira e chata: vale bem a pena um minuto de prazer na boca, uma hora de peso na consciência e um ano de casca de laranja nas coxas, porque os senhores das farmácias também têm que vender aqueles cremes maravilhosos que não funcionam e assim é da maneira que os nossos maridos ficam com ideias profícuas de presentes. Mas como tudo o que é bom termina sempre, rapidamente se assolou sobre o meu estômago uma overdose nutricional que ultrapassou o seu "Estado Limite de Utilização", conferindo-lhe um mal-estar insuportável que, num ápice, pôs termo às festividades gastronómicas - nitidamente, um erro no cálculo das solicitações de um órgão, por sua vez deficientemente dimensionado com o objectivo de permitir ao utilizador vestir um par de calças com 10 anos e respirar ao mesmo tempo.

Deste modo, as farturas ganharam um bilhete para outra romaria e deram lugar a uma caminhada necessária à absorção do repasto. Entre canecas para beber vinho verde, santinhos populares para guarnecer as cascatas são-joaninas e o mobiliário em verguinha, destacaram-se os brinquedos “made in china” que já foram integrados como peças tradicionais de venda nestas festas e que voavam sobre as nossas cabeças, não nos cegando por milagre do santo padroeiro. Uns metros mais acima, e com o chouriço, lá em baixo, ainda a lutar com a coca-cola,  damos de caras com a comitiva de doces caseirinhos (ou talvez não) que vêm do Marco de Canavezes e cujas especialidades são as fogaças de… Vila da Feira. Por fim, encontrámos a típica roulotte que vende o que de mais português existe na cena musical nacional, ainda que alguns destes registos apresentem já uma idade considerável e o texto na capa esteja quase indecifrável pela passagem do tempo.

Uma hora volvida e a festa estava no fim, para nós, velhos na casa dos 20 e dos 30. Ficou por visitar a igreja barroca (o verdadeiro ícone religioso desta romaria, só venerado e visto por 13% dos visitantes da festa), mas os altares ainda não estavam preparados pelas mulheres dos pescadores, a noite ia avançada e seria de extrema importância não exportar o meu jantar para a sarjeta dos serviços municipalizados do concelho. Faltou também dar o pulinho ao Padre Grilo e colaborar solidariamente com a sua obra. Mas estou certa que não faltarão oportunidades para ir lá buscar mais uns saquinhos com “relíquias”, na esperança da boneca “gatinhante” ainda lá estar, aproveitando o momento para saudar os senhores dos Pan Pipes, as senhoras africanas que vendem djambés e fazem trancinhas e transportam os filhos às costas (tudo ao mesmo tempo), os vendedores de manjericos, de tachos, de chapéus e todos os imigrantes ilegais que negoceiam a elevada qualidade das falsificações rascas das melhores marcas internacionais – tudo em prol da nossa saúde ocular. Também não fui aos “carrosséis”, mas este tipo de actividade, assim como o bailarico que estava ali ao pé, seria totalmente incompatível com o estado gástrico do meu devaneio culinário - isso e uma eventual facadita proporcionada pela falta de segurança local.

E lá voltamos para a nossa viatura de barriga cheia de festas populares, rezando ao São João, ao Santo António, ao São Pedro e, claro, ao Senhor de Matosinhos, para estarmos cá para o ano outra vez a comer outro pãozinho com chouriço e, quem sabe, comer uma fartura ou duas. Isto, claro está, se o FMI não decretar o FIM da nossa conta bancária e se o Passos Coelho não acabar com estes feriados que me dão tempo para comparecer as estes eventos (e para publicar o seu registo).


2 comentários:

  1. Nunca o termo "Estado Limite de Utilização" foi tão bem contextualizado!! :) Mais uma vez.. muito bom!!!

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  2. Ai "Inginheira do Carago"... Beijo grande!

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